violencia

Crítica- Três Anúncios Para Um Crime

por Luis Capucci

Equilibrar gêneros diferentes no mesmo projeto é algo complexo, principalmente se eles forem tão distintos quanto comédia e drama. Apesar disso, muitos cineastas conseguem chegar a esse equilíbrio. Infelizmente, não é o caso de Martin McDonagh em “Três Anúncios Para Um Crime”. O filme acaba funcionando por conta da temática e dos personagens complexos, mas tem um claro problema de tom.

Roteirizado pelo próprio diretor, o longa conta a história de Mildred Hayes (Frances McDormand), uma mãe em luto pela filha que foi brutalmente assassinada e estuprada. Indignada com a falta de competência da polícia em solucionar o crime, a mulher decide alugar três outdoors em uma estrada e utilizá-los para questionar as autoridades. Os anúncios chamam muito a atenção, mas geram problemas para a protagonista e para o Delegado Willoughby (Woody Harrelson), o responsável pelo caso.

Como já fica claro pela sinopse, o longa lida com uma temática pesada. Mesmo assim, a inserção de humor em alguns pontos seria possível. Diversos diretores já fizeram isso com sucesso (inclusive McDonagh no ótimo “Na Mira do Chefe”), mas o cineasta erra a mão aqui. A cena que melhor exemplifica isso é aquela na qual um momento violência doméstica está ocorrendo e para quebrar a tensão é inserida uma piada envolvendo um banheiro, o que soa extremamente inadequado.

Fica claro que Martin McDonagh quer emular o estilo dos Coen. Ele trabalha aqui com atores que também já estiveram em projetos dos irmãos (Frances McDormand inclusive é casada com Joel Coen) e cria uma narrativa que une drama, comédia e violência em um ambiente rural. Apesar de seguir essa cartilha, o diretor não consegue chegar ao mesmo nível dos filmes da dupla.

Porém, deve-se elogiar o roteiro do cineasta pelas temáticas que ele aborda. O longa mostra o descaso da polícia com um caso de assassinato de uma mulher, o que infelizmente reflete uma realidade machista de praticamente o mundo todo. O cineasta também não tem medo de retratar vários oficiais como figuras violentas e despreparadas que ainda se mostram racistas e homofóbicas. O delegado se mostra uma figura mais centrada, mas é condescendente com as atitudes de seus subordinados.

McDonagh cria figuras complexas também como a do ex-marido agressor. Essa pessoa violenta e machista (o fato de ela namorar uma garota de 19 anos tendo mais de 50 é revelador também) poderia ser uma personagem unidimensional, mas ele ganha outras camadas quando percebemos o amor que nutre pelos filhos. Logicamente, isso não justifica as atitudes da figura, mas o torna mais real. O mesmo acontece com Mildred. Apesar de sua indignação ser totalmente justificável, a mulher vivida por Frances McDormand age de forma bastante violenta em certos momentos.

O diretor/ roteirista acerta também ao ambientar duas cenas de dialogo sobre a filha da protagonista em balanços que remetem a uma criança. Porém, ele também cria situações forçadas como aquela na qual uma pessoa está na delegacia quando não deveria estar e outra que envolve um encontro em um quarto de hospital.

No elenco, o destaque vai para Frances MacDormand, que vive Mildred de maneira muito complexa. Ao mesmo tempo em que ela demonstra uma dor enorme pela filha, que é algo que claramente a fragiliza, também demonstra uma força enorme, sendo até uma figura ameaçadora em alguns momentos. Woody Harrelson, por sua vez, demonstra não concordar com a postura da protagonista, mas claramente entende a dor dela. O personagem do ator também enfrente seus problemas pessoais. Já Sam Rockwell vive Dixon como um policial violento e preconceituoso, mas que não se mostra muito esperto e tem um senso pessoal de justiça. A pouco conhecida Sandy Martin faz um ótimo trabalho ao viver a mãe do personagem de Rockwell como uma pessoa manipuladora que incute preconceitos no filho, mas que também comove em uma cena especifica que se passa em um banheiro.

Na direção, McDonagh impressiona principalmente por um momento violento rodado como plano-sequência. Outro destaque nesse sentido é aquele na qual o cineasta enquadra o delegado Willoughby através de grades em uma cena chave do arco do personagem.

O design de produção de Inbal Weinberg, a fotografia de Ben Davis e os figurinos de Melissa Toth utilizam bastante o vermelho para denotar a violência. Em certo momento, um letreiro neon dessa cor pinta Dixon antes dele se envolver em uma briga e os próprios anúncios que dão nome ao filme são dessa tonalidade. É interessante notar também como grande parte das roupas que os personagens vestem no longa são escuras e denotam a tristeza deles. Da mesma forma, as paredes descascadas da casa de Dixon passam visualmente informações sobre as condições financeiras do policial.

Já Carter Burwell faz um trabalho típico dele na trilha sonora ao utilizar instrumentos que remetem às regiões rurais dos Estados Unidos, mas funciona.

Na realidade, “Três Anúncios Para Um Crime” poderia ser muito melhor se tivesse encontrado um tom certo da narrativa. Não é ruim, mas soa como um filme menor de Martin McDonagh.

 

Crítica- Fargo

fargo-marge-2por Luis Capucci

(Essa crítica contém spoilers)

A arte é algo impressionante por proporcionar que as mais diferentes pessoas deem suas contribuições para o mundo. Quando se pinta um quadro, se compõe uma música, se programa um videogame ou se faz um filme, o âmago de cada um dos indivíduos responsáveis por aquele projeto se materializam ali. E o mais fascinante é que cada pessoa tem uma visão de mundo. Os irmãos Coen, por exemplo, observam a vida com uma ótica muito interessante. Em “Fargo”, um de seus grandes filmes, eles misturam humor, violência e regionalismo de forma impressionante.

Supostamente baseado em fatos reais, o filme se passa em 1987 na cidade de Fargo, no Dakota do Norte, nos Estados Unidos e conta a história de Jerry Lundegaard (William H. Macy), um vendedor de carros que está com dívidas gigantescas.  Para resolver seus problemas financeiros, ele bola um plano para que a esposa (Kristin Rudrüd) seja sequestrada por dois criminosos (Peter Stormare e Steve Buscemi), que ficariam com um carro e metade dos 80 mil dólares do resgate, que será pago pelo sogro (Harve Presnell), um rico empresário. Porém, as coisas não saem como planejado e muitas mortes acontecem, fazendo com que a policial Marge Gunderson (Frances McDormand) comece a investigar o caso.

A primeira piada do longa já se encontra na cena inicial, quando é dito que “Fargo” é baseado em fatos reais. Isso é mentira. Apesar dos Coen terem se inspirado em alguns casos verdadeiros para escrever o roteiro do filme, a trama geral do longa é totalmente fictícia. Com isso, eles se utilizaram da confiança do público para fazer que as situações mais absurdas soassem reais.

Apesar de o humor ter grande importância nesse filme, ele não surge de forma convencional. Os irmãos cineastas tiram graça do absurdo em cenas como aquela na qual o sequestrador vivido por Buscemi tenta olhar dentro de uma casa através de um vidro, sendo que a vítima está vendo tudo; e também na sequência em que o personagem de Stormare é mordido por uma pessoa e vai procurar uma pomada em um momento muito impróprio.

O longa usa muito bem o humor negro, como prova a cena na qual a esposa de Jerry tenta fugir, mas corre sem rumo pois está com um saco na cabeça ou o momento no qual é mostrado uma perna para fora de um picador de madeira. Uma sequência particularmente engraçada é aquela na qual Shep (Steve Reevis), o homem que indicou os dois sequestradores para o vendedor de carros, espanca o personagem de Buscemi com uma cinta.

Mas os melhores momentos cômicos do filme envolvem os sotaques carregados (e propositalmente exagerados) dos personagens. A forma como um policial que auxilia Marge fala “Yeah”, é particularmente hilária. Outra cena que faz bom uso desse sotaque é uma na qual um guarda vai conversar com uma possível testemunha, que descreve o personagem de Buscemi como um homem engraçado, mas não sabe explicar o porquê. A sessão de perguntas se encerra com um comentário casual sobre o tempo, o que não poderia ser mais adequado.

Mesmo trazendo bastante humor, “Fargo” é uma história sobre crimes, e os Coen não desprezam a realidade para tornar tudo mais leve para o público. Dessa forma, a violência é algo muito presente na trama, surgindo na maior parte do tempo como uma brutalidade inesperada e não como o excesso cômico visto nos longas de Quentin Tarantino, por exemplo. A execução de um policial e um dos criminosos levando um tiro no rosto são bons exemplos dessa abordagem.

Por seus trabalhos aqui, os Coen foram premiados com o Oscar de melhor roteiro original em 1997. Muito disso se deve também à galeria única que personagens que os irmãos cineastas criaram para “Fargo”.

 Jerry Lundegaard é uma figura amoral. Ele planeja o sequestro da esposa para conseguir um dinheiro que precisa, mas ao mesmo tempo, não se mostra particularmente inteligente em suas ações, como fica claro em uma conversa que tem com o filho e na qual o adolescente questiona “Mas e se der alguma coisa errada?”, algo óbvio, mas que não parece nem ter lhe passado pela cabeça. O personagem é brilhantemente vivido por William H. Macy como um ser patético, sendo que isso fica mais claro em sua cena final na qual chora e grita quando é preso pela polícia tentando pular a janela de um banheiro. O mais impressionante na composição de H. Macy são suas sutilezas. Um exemplo disso é a sequência na qual seu personagem tenta convencer o sogro que não é indicado envolver a polícia na negociação com os sequestradores, e o ator fica dando olhando de canto de olho para o outro, observando se ele está acreditando em sua história.

Os irmãos Coen merecem elogios pela a forma como diferenciam as personalidades dos dois sequestradores. O Carl Showalter de Steve Buscemi é um pequeno criminoso que parece querer compensar sua baixa autoestima com gritos e ameaças, mas que pouco faz realmente. Quando Showalter decide agir, normalmente as coisas dão errado, uma vez que sua outra característica é não ser particularmente inteligente, como prova na sequência que enterra o dinheiro na neve de uma forma que dificilmente encontrará depois. Já o Gaer Grimsrud de Peter Stormare é um homem calado, mas extremamente violento. Os cabelos descoloridos e os olhos caídos desse personagem denotam sua instabilidade mental. Stormare faz um ótimo trabalho ao passar toda a frieza de seu personagem através de seu olhar vazio e da expressão sempre fechada que mantém no rosto.

Porém, a melhor personagem do filme é a policial Marge Gunderson. Com uma gravidez avançada e jeito simplório, Marge parece inofensiva à primeira vista, mas se mostra uma figura muito inteligente. Grande parte do sucesso da personagem se deve à premida atuação de Frances McDormand, que cria a personagem mais pura, mas não inocente do projeto. A Marge de McDormand sempre traz um sorriso estampado no rosto e trata as pessoas com simpatia, mas se mostra muito astuta e não demora muito para entender o que está acontecendo no estranho caso que investiga. Essa personagem passa pelo arco de maior destaque no projeto.  Ela tem uma vida simples ao lado do marido (John Carroll Lynch) pintor, mas às vezes se sente entediada. Contudo, durante as investigações, recebe uma ligação de um amigo (Steve Park) que não via há muito tempo e decide encontrá-lo. Porém, logo percebe que o homem tem interesse amoroso nela e o repele, vindo a descobrir depois que ele perseguia outra colega de escola. Ao mesmo tempo se choca com a violência sem sentido do caso que está investigando. Com isso, volta para casa feliz de reencontrar a simplicidade e o amor de seu marido.

Apesar de só Joel Coen ser creditado pela direção, seu irmão Ethan também teve voz ativa durante esse processo. Os dois criam vários momentos memoráreis, sendo eles chamativos ou mais sutis. Um exemplo disso é a forma como ressaltam a pequenez de Jerry perto do sogro e como o segundo pouco se importa com o primeiro, ao trazer o personagem de William H. Macy desfocado ao fundo, enquanto o indivíduo vivido por Harve Pressnell fala com ele sentado no sofá e bebendo uma cerveja em primeiro plano. Os cineastas, ao lado do fotógrafo Roger Deakins, criam uma cena geometricamente muito bonita, que é aquela na qual Jerry vai buscar seu carro no estacionamento congelado. Os Coen utilizam um plano plongée para ressaltar o desespero e o isolamento do personagem. Ao mesmo tempo, a posição que o automóvel se encontra e seu formato quadrado se assemelha à geometria das proteções de concreto em volta das árvores que decoram ao local. Já as linhas horizontais dos postes e o branco da neve no chão terminam de criar esse belo plano que poderia ser emoldurado. Em outro momento, os diretores criam um plano contra-plongée para retratar a gigantesca estátua de lenhador que dá as boas vindas aos visitantes da cidade de Brainerd, tornando-o ameaçador e denotando assim as coisas terríveis que aconteceriam ali logo em seguida. Mais um exemplo de cena memorável é aquela na qual Lundegaard recebe dois telefonemas que complicam a sua situação e os cineastas rodam a cena inicialmente com um plano aberto, mas vão fechando o quadro até que só vejamos o rosto do personagem, retratando assim visualmente a pressão que ele sofre.

Na fotografia, o mestre Roger Deakins se destaque ao fazer ótimo uso das locações cobertas de neve. É interessante notar também como ele utiliza o vermelho como símbolo da violência e do pecado. Essa cor surge nos neons do bar atrás do personagem de William H. Macy enquanto ele negocia o sequestro da esposa e no momento dos assassinatos na rodovia. O rubro também aparece na jaqueta de uma das vítimas de Gaer e no limpador de vidros de Jerry, mostrando assim um grande planejamento dos diretores ao lado do fotógrafo, da figurinista Mary Zophres e do designer de produção Rick Heinrichs.

designer, por sua vez, acerta ao decorar a casa de Marge com quadros de pato e utilizar tons pastéis em suas cobertas na cama, o que já passa rapidamente a simplicidade da personagem.

Os Coen também são os responsáveis pela montagem do filme, mas utilizaram o pseudônimo Roderick Jaynes para desempenhar a função. Eles se destacam em uma cena na qual corta da imagem da televisão dos bandidos para a de Marge em aparentemente um único movimento de câmera.

O compositor Carter Burwell é outro que merece ser elogiado. O tema que ele cria já captura em poucas notas a melancolia inerente daquele universo. Grande parte de sua trilha foi inspirado em uma canção popular norueguesa, o que é muito adequado, tendo em vista a nevasca incessante que é vista durante a projeção.

Desta forma, “Fargo” capturou o âmago dos Coen naquele momento e os tornou famosos. Eles continuaram a fazer filmes memoráveis, mas esse se mantém como uma de suas maiores contribuições à sétima arte. A pureza e a inteligência de Marge, a violência de Gaer juntos ao humor presente nas situações mais terríveis e ao desespero contido em uma risada não são fáceis de esquecer.

P.S.: Ouçam abaixo a belíssima trilha do filme:

Crítica- Aconteceu Perto da Sua Casa

por Luis CapuAconteceu Perto de sua Casacci

No início do ano, eu escrevi sobre o filme “O Abutre” (leia a crítica aqui), dirigido por Dan Gilroy. No meu texto sobre o longa abordo a obsessão da sociedade pela violência e pelo grotesco, e como a mídia sensacionalista o captura e o glamouriza. Pois a gênese da obra de Gilroy parece estar nesse “Aconteceu Perto da Sua Casa”, um mockumentary (falso documentário) belga que mostra uma equipe de cinema acompanhando o dia a dia de um psicopata.

Escrito a oito mãos, o filme nos apresenta a Ben (Benoît Poelvoorde, também codiretor e um dos roteiristas do longa), um ladrão e assassino, que começa a ser acompanhado por uma equipe de filmagens, que visa retratar seu dia a dia em um documentário. Mas com o tempo, tudo vai tomando uma dimensão aterradora.

 O documentado se mostra um ser humano assustador. Ele usa o roubo como desculpa para praticar terríveis assassinatos e não mostra pudores em matar crianças e idosos. Durante a projeção, o espectador vai percebendo que Ben é extremamente preconceituoso com mulheres, estrangeiros, negros e homossexuais. Ao mesmo tempo, o protagonista parece querer chamar atenção para si constantemente e crê ser um artista nato, que entende muito de poesia, arquitetura, música e cinema. Se não bastasse, o psicopata ainda tenta ser filósofo em alguns momentos. O que consegue manter o interesse do espectador em uma figura tão odiosa é a magnética atuação de Benoît Poelvoorde, que esbanja carisma em todas as suas cenas e passa uma naturalidade essencial para as falas de seu personagem.

Mas o que torna “Aconteceu Perto de Sua Casa” ainda mais assustador é a forma como os documentaristas retratam e se envolvem nos acontecimentos. Se a própria ideia de documentar as ações (leiam-se roubos e assassinatos) de um psicopata sem intervir nelas ou contatar a polícia soa como algo muito errado, as coisas se tornam piores quando as testemunhas passivas se tornam figuras atuantes nos crimes. Então, se no início a equipe de filmagens registrava Ben enforcando uma idosa, logo são vistos segurando uma criança para que o psicopata a sufoque e participam do estupro e morte de uma mulher e de seu marido. O nível de cumplicidade entre os documentaristas e o documentado se torna tanto que eles passam a esconder os corpos para ele.

A verdade é que durante as filmagens do documentário, Ben deixa de ser apenas o objeto de estudo do projeto e assume também as funções de produtor e diretor. Ele dá dinheiro para que os documentaristas comprem equipamentos melhores e passa a dar palpites diversos aspectos técnicos, como ângulos de câmera. Um exemplo disso pode ser visto em uma cena na qual ele pede que o técnico de som coloque o microfone próximo do pescoço de uma vítima para que seja captado o barulho dos ossos se quebrando.

A hipocrisia dos documentaristas é mostrada quando o técnico de som morre durante um tiroteio. Remy (Rémy Belvaux, codiretor e roteirista do filme), o entrevistador, conta uma história de que o amigo vivia com uma garota e que os dois esperam seu primeiro filho, emendando logo em seguida que continuariam o projeto em respeito à memória do falecido. Porém, esse discurso logo se mostra falso, quando o técnico de som substituto também morre e o personagem de Belvaux conta exatamente a mesma história, que se revela um recurso de roteiro do filme dentro do filme para tocar aqueles que vão ver o “documentário”.

A discussão que “Aconteceu Perto da Sua Casa” suscita é sobre a obsessão da mídia com a violência e forma com que a sociedade lida com isso. Nesse sentido, é reveladora uma cena na qual Ben encontra outro psicopata em um prédio abandonado e ele também está sendo acompanhado por uma equipe de filmagens.

É interessante notar como alguns amigos e a namorada de Ben parecem conhecer seu lado mais sombrio, mas mesmo assim se mantêm ao seu lado, seja por medo ou mesmo por uma mórbida atração. Isso pode ser comprovado na sequência na qual o protagonista mata um homem por rir dele durante uma festa e todos fingem que nada aconteceu. Uma amiga do psicopata chega a entregar um presente para ele com o rosto sujo com o sangue do morto.

O longa também tece críticas à forma violenta com que as pessoas costumam reagir quando veem registros de uma situação de violência através da mídia. Quando se vê um assassinato durante um programa sensacionalista, os sentimentos que essas imagens e os apresentadores despertam são os piores possíveis. Sentimos a necessidade de uma punição imediata para aquela pessoa e que ela sinta a mesma dor que causou ao outro. Mas o que muitos não percebem é que rebater a violência com mais um ato monstruoso é uma insensatez. Se você fizer com o outro a mesma monstruosidade que o condenou, só estará alimentando um ciclo de violência que não tem fim e nem sentido. Por esse motivo (e vários outros) é que a pena de morte é algo condenável. A cena que melhor retrata isso no filme é aquela na qual a mãe de Ben lê no jornal a notícia sobre o assassinatode uma família. Se mostrando revoltada com aquilo, ela diz que seria o júri e o carrasco daquele assassino, sem imaginar que o crime foi cometido pelo seu próprio filho.

Apesar de toda a violência e das discussões sérias que levanta, o filme se mostra bem humorado. Logicamente que as cenas cômicas que aparecem em uma produção como essa são recheadas de humor negro. Muitos dos diálogos mais engraçados saem da boca de Ben, quando ele diz, por exemplo, que matou e enterrou dois árabes e completa um: “Mas voltados para a Meca, é claro”. Esse humor não surge da opressão de uma minoria, mas sim da maneira absurdamente preconceituosa que aquele indivíduo pensa. Outro momento engraçado é aquele no qual a dentadura de uma idosa cai enquanto o protagonista a enforca.

A metalinguagem se faz muito presente em “Aconteceu Perto da Sua Casa. Isso pode ser visto nas cenas que o técnico de som sai procurar um bracelete de Ben e o espectador não escuta mais o que ele está falando. É interessante perceber como o filme chama atenção para suas próprias referências. Em certo momento, durante um assassinato, o documentado diz que aquela cena lembra uma que ele viu em um longa estrelado por Philippe Noiret.

Os diretores Rémy Belvaux, André Bonzel (que também interpreta o cameraman) e Benoît Poelvoorde fazem um ótimo trabalho. Eles usam câmera de mão para dar credibilidade ao documentário que estão tentando emular. Bonzel também é responsável pela fotografia em preto e branco do filme e parece ter escolhido esse estilo visual por capturar com precisão a tristeza das situações retratadas ali.

O longa ainda conta com uma ótima montagem de Belvaux e Eric Dardill. Um momento particularmente interessante criado pelos dois é aquele no qual um garotinho brinca com uma arma de brinquedo e logo em seguida, corta para o revólver real de Ben disparando contra uma vítima.

Com isso, em 1992, esses três diretores já realizaram uma obra que questionava a obsessão da mídia e daprópria sociedade com a violência. Nesse sentido, eles criaram um filme seminal que influenciouvários outros cineastas que trataram do mesmo tema.

Crítica- Na Mira do Chefe

por Luis Capucci

Existe uma grande dificuldade em se misturar comédia, violência e temas sérios. Essa união pode gerar um filme com grandes problemas de tom ou mesmo um longa ofensivo. Quentin Tarantino e os irmãos Coen são alguns dos poucos cineastas que conseguem fazer funcionar um projeto que tenha elementos tão distintos. O diretor Martin McDonagh pode ser adicionado a essa lista também. Em “Na Mira do Chefe”, além de combinar com sucesso essas características tão diferentes, Mcdonagh ainda adiciona um importante elemento teatral em sua trama.

Escrito pelo próprio diretor, o filme conta história de Ray (Colin Farrell) e Ken (Brendan Gleeson), dois matadores que são enviados pelo chefe a Bruges na Bélgica depois de um serviço dar errado. Enquanto Ken se apaixona pelos elementos culturais e a beleza da cidade, Ray demonstra odiar o local.

Martin McDonagh impressiona pela qualidade de seu roteiro nesse filme. A estrutura que cria para a trama é fantástica e complexa. Nas cenas inicias, o cineasta/roteirista se apoia mais na comédia, principalmente no humor negro que sai principalmente da boca de Ray. Nesses momentos, McDonagh gera diálogos hilários e situações absurdas como pode ser visto na cena em que Colin Farrell chama um turista americano obeso de elefante ou na sequência em que diz “Você acha que um guarda de trânsito de 50 anos sabe caratê? Ele era o quê? Chinês?”.

Porém, logo que é revelado o motivo dos dois assassinos estarem ali, o longa muda de rumo e seus personagens deixam de ser apenas figuras engraçadas e se tornam pessoas reais com sérios problemas. Os momentos de humor não deixam de acontecer, mas eles ganham outro significado.

Se não bastasse essa união entre comédia e drama, “Na Mira do Chefe” também flerta com a metalinguagem ao fazer com que as filmagens de um longa que acontecem em Bruges se tornem um elemento importante para a história. Além disso, McDonagh confere toda uma aura teatral para seu roteiro através de sua estrutura. Isso fica claro principalmente nas cenas finais, nas quais Ray vê um reflexo de um quadro que havia visto sobre o apocalipse, que retratava principalmente a punição dos pecadores, na vida real. Essa sequência tem um tom onírico e traz uma triste ironia que faz lembrar o final das grandes tragédias gregas. Não é surpresa descobrir que Martin McDonaugh também é dramaturgo já tendo sido indicado três vezes ao Tony, tendo ganhado duas vezes o prestigiado troféu Laurence Olivier.

O cineasta/roteirista se mostra um mestre também na construção de personagens. Ray é um homem de pouco instrução e que possui um humor bastante questionável, mas também se mostra a figura mais trágica do longa. O modo como personagem de Colin Farrell se identifica com aqueles diminuídos pela sociedade revela muito sobre ele. Ken, por sua vez, é uma pessoa honrada e um grande apreciador da beleza da vida, porém claramente não suporta mais o trabalho que desempenha. Já Harry, o chefe, é uma figura metódica e que possui um rígido código moral próprio que segue com rigor. A união de todos esses elementos constrói uma narrativa rica que rendeu uma indicação ao Oscar de melhor roteiro original para seu autor.

Outro elemento essencial para que o filme funcionasse era o desempenho de seu elenco e os atores não decepcionam. O papel mais difícil ficou com Colin Farrell, uma vez que ele tem que refletir todos os diferentes elementos e tons do roteiro em seu personagem, que é o coração do longa. Felizmente, Farrell se sai muito bem e compõe seu Ray como um homem que esconde abaixo de seu humor rasteiro e de seus modos grosseiros uma alma dilacerada pela culpa. A fragilidade quase infantil que demonstra em alguns momentos é tocante, fazendo com que essa seja a melhor atuação da carreira de Farrell.

Ralph Fienes e Brendan Gleeson são atores vindos do teatro britânico e encarnam seus papéis com muita competência. Fienes consegue tanto convencer o espectador da moralidade de seu personagem, quanto fazer rir com seus inesperados ataques de raiva. Já Gleeson consegue transmitir compaixão no olhar de seu Ken, que age de forma paternal com Ray, ao mesmo tempo em que exibe uma expressão cansada o tempo todo.

Apesar da trama ter um tom teatral, a direção de Martin McDonagh não poderia ser mais cinematográfica. O diretor segue seus atores com a câmera, o que passa uma realidade maior para o longa. O cineasta, ao lado do diretor de fotografia Eigil Bryld, explora as belezas de Bruges como seu rio, as igrejas e seu belo estilo arquitetônico, tornando a cidade um importante personagem da trama. Ao mesmo tempo, McDonagh não tem medo de mostrar as consequências da violência, criando cenas que chocam pela brutalidade em alguns momentos.

O compositor Carter Burwell, por sua vez, cria uma belíssima trilha sonora para o filme. Seus toques de piano e o ressoar de seus violinos capturam com perfeição a melancolia implícita na trama.

Desta forma, “Na Mira do Chefe” entra para o seleto grupo de longas que funcionam misturando elementos aparentemente distintos como a comédia e a violência. O filme conquista principalmente pela sua elegância narrativa ao usar o estilo da farsa para mascarar seu coração de tragédia.Film Title: In Bruges