por Luis Capucci
Martin Scorsese é um diretor muito associado aos filmes de máfia. Apesar de ter dirigido os mais diferentes tipos de projetos, o inconsciente coletivo injustamente o associa apenas aos longas de gângster. Mas ao ver “Caminhos Perigosos”, “Os Bons Companheiros “, “Cassino” e “Os Infiltrados” é fácil de se perceber que um não tem nada a ver com o outro. “O Irlandês” também se mostra muito diferente ao ser um ensaio sobre a culpa e até um conto moralizante sobre onde as escolhas erradas levam as pessoas.
Baseado em um livro que segue figuras reais, o longa conta a história do personagem do título Frank Sheeran (Robert De Niro), um caminhoneiro veterano de guerra que é recrutado pela máfia e se torna um assassino para eles. Em certo momento, ele é designado para fazer a segurança do líder sindical Jimmy Hoffa (Al Pacino), de quem se torna amigo. Posteriormente, o protagonista tem sua lealdade ao crime testada.
Scorsese foi muitas vezes acusado de glamourizar a vida da máfia e a violência que ela propagava. Ele nunca fez isso. Os filmes dele retratavam esses personagens como figuras complexas, mas não mostrava o que eles faziam como algo positivo. “O Irlandês” é o trabalho dele que deixa isso mais claro. Aqui, os assassinatos são mostrados de maneira crua.
Da mesma forma, o cineasta mostra que aquele tipo de vida tem consequências sérias. Isso fica claro com quando junto com a legenda com o nome dos personagens, que surge para apresentá-los, também aparece o destino deles que, na maioria das vezes, é uma morte violenta.
A vida de Sheeran também encontra reflexo nisso. Ele não mostra escrúpulos em matar e até consegue uma posição de líder sindical, mas suas ações só geram a solidão na velhice. As filhas crescem apavoradas sabendo que o pai é um assassino. Uma delas nunca mais conversa com ele depois de uma ação particularmente cruel. Essa mesma atitude lhe causa um remorso que o acompanha até o final dos dias e se mostra uma vergonha tão grande que ele não consegue verbalizar nem em uma confissão com o padre.
É essa figura alquebrada que narra a história. Seguindo a linha de raciocínio dele, a trama não segue uma cronologia fixa. Então, o espectador vê tanto o protagonista e as pessoas que o cercam jovens quanto bem idosos.
Para alcançar o rejuvenescimento dos atores, o longa utiliza efeitos especiais. Apesar de eles ainda soarem artificiais em alguns pontos, se mostram a versão mais evoluída que esse tipo de tecnologia já alcançou. É fascinante notar como a pele dos atores, ainda quando mais jovens apresenta imperfeições e até mesmo rugas, o que torna tudo muito mais realista.
Da mesma forma, a maquiagem de envelhecimento utilizada no ato final impressiona pelo realismo. Mas o que passa ainda mais realidade para tudo é atuação dos atores e o elenco todo está muito bem.
Como Sheeran, De Niro entrega uma de suas melhores atuações em muito tempo. É uma composição minimalista que dá muito mais importância para olhares e pequenos gestos do que para grandes explosões. Um exemplo disso é a cena na qual ele é designado para uma missão. A tristeza vai tomando conta dos olhos dele enquanto se dá conta do que está acontecendo.
Outro momento, é um no qual ele tenta fazer um telefonema, mas a culpa só permite que balbucie as palavras. Essa sequência é ressaltada pela direção espetacular de Scorsese, que coloca Frank no canto do quadro, refletindo assim os sentimentos dele. A fotografia dessaturada de Rodrigo Prieto unido ao design de produção de Bob Shaw e figurinos de Christopher Peterson e Sandy Powell, que usam cores tristes, ressaltam ainda mais o que está acontecendo na cena.
O cuidado de De Niro na composição do personagem fica ainda mais claro no ato final. Em certo momento, uma enfermeira que está atendendo vê as fotos que estão na mão de Frank. Ela não reconhece Jimmy Hoffa, que foi uma celebridade na época, o que leva o protagonista a pensar como o tempo faz com que todos sejam esquecidos. A mulher termina o exame e diz que ele está bem. O personagem de De Niro então afirma que continua vivo. A melancolia que o intérprete passa para essa última palavra é a coisa de um verdadeiro gênio.
Joe Pesci, por sua vez, está longe do cinema há bastante tempo, mas aqui entrega uma atuação espetacular. Assim como o protagonista, o ator utiliza a sutileza para compor o mafioso Russell Bufalino. É interessante notar a maneira com que ele dá as ordens sem dizer exatamente o que ele quer que a pessoa faça, mas isso já fica claro pelo olhar. Já no ato final, a atuação dele como um homem já bem velho impressiona pela maneira pausada com que diz as falas e a postura encurvada que assume.
Fechando o triunvirato, Al Pacino segue um caminho adequadamente diferente com seu Jimmy Hoffa. O sindicalista que ele constrói é uma pessoa teimosa e dado a explosões, mas igualmente fascinante.
O roteirista Steven Zailian, por sua vez, utiliza a figura de Hoffa para falar da relação da máfia com o poder. O personagem de Pacino ajudou a financiar a campanha de Richard Nixon. Isso o leva a ganhar o perdão presidencial, que gera a sua liberação da cadeia, quando o político chega ao cargo.
Por sua vez, o longa mostra que a máfia italiana fez campanha para John Kennedy e chega a sugerir que eles estiverem envolvidos no assassinato dele quando algumas promessas não foram cumpridas.
Ao mesmo tempo, o ótimo roteiro de Zailian retrata como o dinheiro faz com que mesmo a experiência na prisão seja minimizada para os poderosos. Hoffa, por exemplo, toma sorvete na cadeia.
Scorsese, como de costume, guia a trama de maneira magistral. O cineasta cria planos longos na cena que abre o filme e em uma que envolve um assassinato. Mas o que mais impressiona é a maneira como ele não permite que o filme se torne arrastado durante as suas quase 3h30.
Nesse sentido, ele é ajudado pela montadora Thelma Schoonmaker, sua parceira habitual. Ela vai construindo a narrativa gradativamente até que o espectador entenda o que o filme está querendo passar.
Também se destaca em cenas específicas como aquela na qual a esposa de Hoffa suspeita que tenha uma bomba no carro. A música para, aumentando assim a tensão, quando ela vai ligar o veículo. No momento em que a mulher dá a partida, Schoonmaker insere um frame da explosão de um automóvel. Outra sequência de destaca é no ato final, com Frank e Hoffa no carro, que também é extremamente tensa (e triste), o que a ressaltado pela falta da trilha sonora.
Rodrigo Prieto, por sua vez, vai deixando a fotografia cada vez mais dessaturada, o que aumenta a melancolia no ato final. Ele também cria planos lindíssimos como aquele de Sheeran na frente de vários túmulos.
O músico Robbie Robertson também captura com perfeição esse tom melancólico em sua trilha, que é construída a partir do toque recorrente de uma gaita.
Essa tristeza acompanha o espectador ao fim da projeção. Scorsese não fez apenas mais um filme de máfia (a palavra apenas não poderia ser usada para definir nenhum dos projetos dele), mas sim uma história que faz pensar sobre as consequências das escolhas que cada um faz durante a vida.